Californian style: a bagualice televisada

Que lindo ver a Califórnia da Canção Nativa de volta, com todo o gás! Que orgulho para o Rio Grande do Sul ter um festival de 35 anos! Que sensacional a participação de artistas e público nesta 35ª edição, de volta ao ar livre, na cidade de Uruguaiana (RS).

Este é o discurso da hora. E eu concordo com ele. Mas algumas pulgas se recostaram atrás de minha orelha enquanto assistia ao show televisivo que a TVCom promoveu junto ao festival, no dia 10 de dezembro. E a própria transmissão ao vivo para o Rio Grande do Sul inteiro foi uma dessas pulgas. O fato é que o Grupo RBS, dono da TVCom e do monopólio midiático gaúcho, havia abandonado os festivais nativistas no final da década de 1990. Então essa “volta” da Califórnia pode ter significado uma volta aos braços da RBS.

Tempo bão
Já se foi o tempo em que o programa Galpão Crioulo era exibido em horário nobre, concedendo grande parte de seu show musical aos destaques dos festivais nativistas. Saudosa é a Revista ZH (hoje Segundo Caderno), com Gilmar Eitelvein e Juarez Fonseca, avaliando criticamente cada festival, em todos os cantos do Rio Grande do Sul. Isso sim era multimídia potencializando uma cultura híbrida.

O final do século XX no estado foi marcado pelo debate acerca da identidade sulina, através predominantemente da expressão musical. E o debate era reverberado em jornais, rádios e televisões. Foi pungente a movimentação cultural em busca de uma música sul-rio-grandense. A Califórnia cumpriu papel de estopim e sustentação nesse processo.

Gaucho standards
Hoje ficaram gravados em nossa memória auditiva clássicos do gauchismo, como “Veterano”, “Negro da Gaita”, “Tropa de Osso”, “Desgarrados”, “Esquilador”. Músicas belas e originais, que fundaram um estilo nativista de ser. Seus compositores marcaram época e desenvolveram trabalhos contemporâneos, híbridos latino-americanos.

Mas seus herdeiros, com algumas exceções, parecem que não entenderam bem a mensagem dos seus predecessores. Ao invés de criarem algo belo e original, imitam o que foi belo e original. Assim, acabam emitindo algo feio e kitch.

Regulamentos
Talvez a própria entidade “festival” seja responsável por esse processo pastichizante da música nativista. Existe o tal do regulamento, que está no cerne da invenção e existência do festival. É uma competição! Desta forma, em uma perspectiva bourdiesiana, o artista tem dois campos onde desempenhar: o primeiro é o próprio da arte (em que valem as convenções estéticas, referências eruditas, espontaneidade e criatividade) e o segundo é o do regulamento (em que valem o cumprimento de regras, alicerçado em devires políticos e econômicos).

E no caso do programa de televisão do dia 10 de janeiro, um terceiro campo está de volta, logo impondo seu funcionamento “ideal” aos artistas: o campo midiático. Nunca vi tanto gaudério falando certinho, com poucas e objetivas palavras. Foi o que aconteceu na cobertura televisiva da TVCom. Parece que teve índio velho ensaiando mais para ser entrevistado pelo repórter da RBS do que para cantar música.

Coisa nova
E assim imperou a estética do pastiche bagual na 35ª Califórnia da Canção Nativa. Nada apareceu de novo. Salve Pirisca Grecco, que é novo mas já ganhou duas Calhandras de Ouro. Esse sim é um dos que buscam uma música bela e original. Como ele mesmo afirmou em suas entrevistas ao vivo: “o que vale é a espontaneidade e o desejo de cantar e colaborar com o movimento; o resto é conseqüência”.

A grande decepção
Estive ansioso alguns meses para ouvir a maior novidade do mundo nativista gaúcho: o grupo Buenas e M’espalho. Finalmente, pela televisão, no show que fizeram no intervalo da Califórnia, saciei minha curiosidade e me decepcionei uma barbaridade. Afinal: eles não tocaram nada belo e original. Apenas amontoaram clichês gaudérios, entonação de voz bagual, batida socada de violão e pontos de vista político-culturais ruralistas. O “quê” urbano que prometiam, eu não ouvi.

O show do grupo destoou um pouco da performance que garantiu o primeiro lugar à música “Céu na Terra pelo Rio”, de Tadeu Martins e Lênin Nuñez, na qual participaram. Por sinal, a temática da canção destoou inclusive de toda a história da Califórnia. A letra falava de índios. Não de gaúchos. O legal é que representou algo novo e venceu. Mas não representou o que foi a maioria das músicas concorrentes no festival.

Vi uma total falta de inspiração e de espontaneidade, como nas entrevistas ao repórter da RBS, ao vivo. A gauchada contava as palavras para falar sem ser entediante e o jornalista reverenciava a Califórnia como uma entidade sobrenatural, mas que pouco ou nada conhece de sua história e artistas.

Old style
Arrematando, afirmo ainda que onde um regulamento é somado à mídia, triplicado com a indústria fonográfica e maximizado com a falta de inspiração, não há espontaneidade que sobreviva. Mas, neste final de ano, estou esperançoso. Tenho fé no futuro do nativismo. A música vencedora da Calhandra de Ouro não me empolgou, mas guardou uma pontinha de perseverança na briga por uma nova música bela e original do sul do Brasil.

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