Na costa inclemente do Brasil meridional

A navegação na formação do Rio Grande


Projeto de pesquisa da UPF, coordenado pelo professor Tau Golin e com a colaboração de pesquisadores portugueses e navegadores brasileiros e uruguaios, reconstitui a história da Esquadra do Sul, cujas operações navais no Atlântico sul e na lagoa dos Patos, no século XVIII, contribuíram para a conquista das terras e águas do Rio Grande do Sul, além de garantir o canal de entrada mais importante para a ocupação de todo o território.Leia elementos desse estudo na entrevista abaixo.



Professor, qual a importância histórica da Esquadra do Sul?
Em 1763, depois de um breve período de aliança entre portugueses e espanhóis, cujos exércitos coligados combateram contra os guaranis missioneiros dos Sete Povos, em conseqüência da rejeição dos índios ao Tratado de Madri, conveniado em 1750, o governador de Buenos Aires desencadeou o projeto geopolítico de expulsão dos luso-brasileiros do Rio Grande. O fracasso diplomático acertado em Madri, apesar da guerra contra os índios e a expulsão dos jesuítas, foi reconhecido no Tratado do Pardo. Na visão espanhola, as terras do Rio Grande retornavam ao seu reino. Sob o comando de Pedro de Cevallos, as forças castelhanas foram organizadas para a mega operação de “reconquista”. Imediatamente, tomaram a Colônia do Sacramento, as fortalezas de Santa Tereza e São Miguel (hoje, território uruguaio), diversos fortes e tranqueiras, a vila de Rio Grande (na época, capital rio-grandense), a Guarda do Norte (atual cidade de São José do Norte). Essa avassaladora operação foi sustada quando as tropas estavam na Ponta Rasa, que é a primeira península importante ao norte de São José, e com a esquadra operando na lagoa dos Patos, em direção a Porto Alegre e Rio Pardo. Os comandantes em campo assinaram um armistício enquanto esperariam a confirmação das notícias da paz acordada na Europa entre Portugal e Espanha.

Se não fosse assinado o armistício essas povoações poderiam resistir?
Era uma operação surpreendente. Depois que os espanhóis tomaram a vila de Rio Grande e transpuseram o canal da barra, a próxima cidadela a cair seria Viamão. Um êxodo de proporção significativa foi desencadeado, com a população fugindo para o norte e em direção a Santa Catarina. De outro lado, centenas de casais açorianos, depois de perambularem pelo Rio Grande, pois estavam destinados ao povoamento das Missões, e serem saqueados pelos próprios soldados portugueses na retirada da vila de Rio Grande, aceitaram o “convite” de Cevallos para povoarem terras uruguaias.

E qual foi o desencadeamento do armistício?
O Rio Grande era apenas um elemento na geopolítica mundial dos impérios coloniais ibéricos. Depois de várias operações de guerrilha de cavalaria e embarcações rápidas de pequeno calado, contra a aparente orientação de Lisboa, o governador José Custódio de Sá e Faria conseguiu retomar a Guarda do Norte, em 1767, após uma tentativa desastrosa de invasão de Rio Grande. O ataque foi marcado no dia do aniversário do rei português, José I. Em sua homenagem, a guarda recebeu o nome de São José. Dessa forma, o Rio Grande luso-brasileiro era em torno de um terço do seu território atual. A fronteira era formada por uma linha média contínua pelas águas da lagoa dos Patos, lago Guaíba e rio Jacuí. Portanto, Passo Fundo estava na fronteira em disputa. Não deixa de ser uma questão emblemática, o rio Jacuí, denominado de rio Grande, principal via de penetração para o oeste, pelos colonizadores, acabou dando o seu nome ao Estado. Ao ter sua nascente na região de Passo Fundo, poderíamos dizer que, do ponto de vista identitário, o Rio Grande nasce no Planalto Médio.

E a Esquadra do Sul como entra neste imbróglio geopolítico?
De certa forma, apesar dos protestos diplomáticos, as operações no Rio Grande se independizaram. As tropas de terra, baseadas na cavalaria, e especialmente com o uso de milicianos para não configurar uma agressão de um Estado sobre o outro, não surtiam resultados. A liberalização dos grupos para fustigar o inimigo, inclusive com incursões em seus domínios, produziu um fenômeno assustador – o da bandidagem sob o interesse das autoridades, hordas de matreiros e de gaúchos faziam razias além do interesse militar, arreando os gados particulares, saqueando, estuprando, promovendo a barbárie por onde passavam. A campanha virou um verdadeiro inferno, de baixíssimo trato civilizatório. A vantagem espanhola estava representada pela manutenção de uma esquadra na barra de Rio Grande e nas águas da lagoa dos Patos, auxiliada por uma rede de fortes ao sul do canal. Ou seja, vencer a esquadra espanhola era a questão chave em uma estratégia de guerra. Essa decisão foi tomada na conjuntura da expedição de um outro governador de Buenos Aires, o general mexicano Vertyz e Salcedo, que em 1773 retomou a ofensiva, percorreu toda a campanha e fronteira.

Então, foi nessa dimensão maior que a Esquadra do Sul foi formada pelos portugueses?
Exatamente. Em Lisboa, o gabinete do marquês de Pombal estabeleceu o plano geral de reconquista do Rio Grande, superando aquela fase preliminar - mas importante - das escaramuças de cavalaria. Para retomar Rio Grande era fundamental uma esquadra, com poder de artilharia, e tropas de infantaria para o desembarque.A cavalaria constituiria a tropa auxiliar. Dessa forma, em 1774, foi criada a Esquadra do Sul. O seu comando foi entregue a oficiais ingleses. Na primeira fase, esteve sob o comando do irlandês Robert MacDouall, navegador com enorme experiência na marinha inglesa. Ao chegar no Rio de Janeiro, ele requisitou embarcações que operavam no Brasil. Com o conjunto de barcos submetidos a um comando unificado e dispostos em uma hierarquia, a esquadra formada para reconquistar o Rio Grande acabou constituindo o núcleo do que viria a ser a Marinha Brasileira. Ao mesmo tempo, em Porto Alegre, o governador Manuel Jorge de Sepúlveda (José Marcelino de Figueiredo) recuperou embarcações do “mar de dentro” e concentrou sumacas, faluas, chalupas, lanchões e balsas nos portos de São Caetano da Barranca (Saco do Rincão) e São José do Norte. Para o comando-geral em terra, Pombal nomeou o general João Henrique Böhn.


E quais foram as ações da esquadra?
Suas condições de operações eram muito difíceis, pois os ancoradouros mais seguros estavam distantes da barra do Rio Grande cerca 300 milhas náuticas, nas baías abrigadas da Ilha de Santa Catarina. Para se ter uma idéia, o tempo médio para percorrer esse espaço, com vento favorável, é de 60 horas. As barras de laguna e Imbituba eram navegáveis apenas em calmarias; Torres, uma temeridade. Se ainda hoje são perigosas, com muitos naufrágios, imagine-se no século XVIII. Em tal situação, a esquadra, ou alguns dos seus barcos, precisavam zarpar e ficar singrando o litoral sul durante vários dias em uma costa desabrigada, a mercê das viradas do tempo, dos temporais, em mar revolto e ondas enormes. Assim mesmo, a esquadra conseguiu sustar o apoio significativo por mar aos espanhóis em Rio Grande.

Ocorreram batalhas importantes?
Em fevereiro de 1776, a esquadra, com nove unidades, dividida em duas esquadrilhas sob o comando de MacDouall e Hardecastle, fez a primeira investida para penetrar no canal e passar para dentro da lagoa dos Patos. Foi terrivelmente fustigada pela artilharia dos fortes da margem sul e pela esquadra espanhola, formada por sete embarcações principais. A batalha durou em torno de cinco horas. Todas as manobras eram realizadas à vela, dependendo do vento e sofrendo a ação das correntes, que, no local, pode ter uma velocidade média de 4 km/h conforme a vazante. Mesmo com perdas significativas, a esquadra passou para o “mar de dentro”. A partir daquele instante, o general Böhn poderia contar com aproximadamente 12 embarcações de guerra e várias jangadas de madeira, construídas pelos ribeirinhos e, em especial, pelos soldados de Pernambuco.

Com esses contingentes, então, as tropas luso-brasileiras puderam realizar o ataque final?
Sim. Em primeiro de abril de 1776, no aniversário da rainha, durante a madrugada de festejos, em meio a uma estrondosa pirotecnia de foguetes comemorativos, usados como simulação, a esquadra começou a operar enquanto as tropas de terra, embarcadas em jangadas, fizeram a travessia do canal. A batalha começou em torno das 3:00 e, a partir das 9:00, foram caindo todas as cidadelas espanholas. Em torno das 18:00, o general Böhn deu o ultimatum, com a capitulação ocorrendo às 21:00. Após conversações, os comandantes estabeleceram a madrugada seguinte para a evacuação espanhola por terra e mar. Na tarde de 2 de abril, as tropas luso-brasileiras assenhorearam-se de Rio Grande e, até o dia 7, reconquistaram as terras até as fortalezas perdidas em 1763, 13 anos antes. Essas operações tiveram um impacto tão grande na geopolítica ibérica que, imediatamente, a Espanha formou uma frota com mais de 100 barcos e 10 mil homens para reconquistar o Rio Grande. Foi colocada sob o comando de Cevallos, que zarpou com o título de vice-rei do Prata. Enquanto singrava o Atlântico, a diplomacia portuguesa iniciou as conversações para um novo tratado, assinado em Santo Ildefonso, no ano seguinte. Assim mesmo, Cevallos tomou a Ilha de Santa Catarina, que permaneceu sob domínio espanhol até 1778.

Por que essa história é pouco conhecida?
Se tivesse ocorrido nos Estados Unidos já faria parte da sua indústria cultural, produziriam diversos filmes, seriados, etc., pois possui a dimensão de ser um fenômeno fundante da região. Mais uma vez, o destino de Passo Fundo estará ligado à navegação, pois o Tratado de Santo Ildefonso estabeleceu que a faixa de fronteira seria formada entre as nascentes das bacias do Jacuí (Guaíba, e lagoas dos Patos e Mirim) e do rio Uruguai.


Como a pesquisa desenvolvida na UPF pretende contribuir para superar este grande vazio na história do Rio Grande?
Partimos de uma metodologia de história comparada, que implica em escriturar a historicidade dos lugares. Ou seja, o espaço é entendido como uma estratigrafia de diversos tempos, impregnado de fenômenos sociais, culturais e depositário de técnicas e conhecimentos, muitas vezes existentes, mas não percebível pelas próprias populações depositárias dessas heranças.Por exemplo, o Rio Grande foi conquistado, ocupado e sustentado até o século XX pela navegação. Inclusive o Rio Grande imigrante, cujas levas de colonos chegaram embarcados e progrediram a partir do sistema de hidrovias e portos. Entretanto, como a identidade depende de certa vivência ritualística constante, vigora um certo imaginário elaborado pela indústria cultural a partir do cavalo e não do barco. Um não se sustenta sem o outro, porém o estratégico é a navegação.



Para dar conta de tudo isso, como que a pesquisa é feita?
Além do trabalho em arquivos, com documentação escrita e iconográfica, estamos reconstituindo as rotas, os ancoradouros e as operações da Esquadra do Sul desde sua formação em Portugal até o Rio Grande do Sul. Isso implica em fazer um imenso trabalho de cartografia náutica, de observação das condições de navegação nas águas singradas, e uma tentativa de reconstituição da vida a bordo.

Quais os espaços de pesquisa já observados?
Na lagoa dos Patos ainda falta parte do “antigo canal”, na margem leste, especialmente do Saco do Rincão a São José do Norte. No mar, o trabalho é feito gradativamente. Estamos indo em etapas, pois dependemos da colaboração de outros velejadores. Essas expedições vêm ocorrendo desde 2005. Foram importantes as contribuições dos capitães Adriano Machado Marcelino e Ademir de Miranda, donos dos veleiros Passatempo e Entre Pólos, em especial nas rotas do Rio de Janeiro a Pernambuco, com a montagem do Cabo de São Tomé, etc. Porém, o espaço que necessita mais detalhes abrange desde Rio Grande até o Rio de Janeiro. Estou prevendo também uma fase de travessia do Atlântico.

Qual o barco utilizado recentemente?
Na costa atlântica, o veleiro Entre Pólos, do comandante Ademir de Miranda, colaborador entusiasta do projeto. Na lagoa dos Patos, o meu veleiro Kaingang.

São barcos grandes?
O Entre Pólos é construído em ferro e tem o tamanho de 42 pés – em torno de 12 metros. O Kaingang possui 23, em fibra de vidro.

Na última navegada da costa do Atlântico Sul, em agosto, quantos estavam a bordo?
O capitão Ademir, eu e o uruguaio Daniel Muñoz, grande conhecedor de instrumentos náuticos, a exemplo de motores, hidráulica, elétrica, eletrônica, etc.

E qual foi o trajeto?
Fizemos a rota de inverno Porto Alegre - Porto Belo, com navegação de singradura direta Rio Grande – Mostardas (través) – Farol de Santa Marta (Laguna) – Ilha de Santa Catarina (por fora) e Porto Belo. Em alguns momentos navegamos aproximadamente a 30 km da costa. Era uma das rotas usadas, com navegação direta à Santa Catarina, sem realizar o acompanhamento paralelo à costa, que era um tipo de singradura também feita pelos portugueses.



E realizaram isso em pleno inverno?
É uma vivência interessante estar em um espaço e imaginar nele os navegadores do século XVIII, contando somente com a propulsão do vento, em um frio terrível, exposto no convés.

E estava muito frio?
Demais! Para se fazer o trajeto Rio Grande – Santa Catarina velejando é necessário aguardar no canal da barra da lagoa dos Patos, ou em suas proximidades, a entrada da frente fria, que sopra do quadrante sul e possui força de ventos com duração de dois a três dias. Quando essa massa polar chega, geralmente com ventos fortes, assim que cruza a sua “cabeça”, ingressamos nela com o veleiro para poder navegar com vento favorável para o norte. Esse inverno foi muito rigoroso. A sensação térmica durante dois dias esteve sempre abaixo de zero, pois o vento de popa atinge diretamente o navegador. Teve momentos, na madrugada, que se colocava tanta roupa que os movimentos ficavam limitados. Chega a ser engraçado se não fosse trágico. Assim que vai chegando a noite, com a temperatura caindo gradativamente, você acompanha acrescentando peças de roupa. Certa madrugada eu estava com duas meias de lã e dois soquetes, duas calças de abrigo e um macacão impermeável, uma camiseta, dois blusões grossos, uma jaqueta, um casaco de couro australiano forrado, especial para navegar em temperaturas baixas, um casaco impermeável com capuz, goro de lã e luvas. E assim mesmo precisava ficar me mexendo durante o meu turno de navegação para suportar o frio e evitar a hipotermia.

Pelo que se percebe, é uma pesquisa também perigosa.
A navegação à vela encerra um conhecimento milenar. Você usa as forças da natureza, vento, correntes, etc. Isso envolve técnicas. Nessa última singradura, o vento se manteve durante praticamente dois dias com força de 15 a 30 nós (27.780 a 55.560 km/h). Em uma noite teve picos de 46 nós (85.192 km/h), com ondas acima de quatro metros. Nesses momentos, a velocidade do barco, com apenas a vela mestra reduzida em duas forras, atingia 11 nós (20.372 km/h).

Qual a habilitação para fazer esse tipo de navegação?
É uma navegação de cabotagem, que exige, no mínimo, a formação de mestre pela Marinha do Brasil.

Depois de concluída qual o destino da pesquisa?


Pensamos em um livro com a história da Esquadra do Sul. Esse trabalho ainda tem um plus mais interessante: a documentação passa a integrar o patrimônio da UPF, disponível aos pesquisadores no acervo do Núcleo de Documentação Histórica do Mestrado em História, localizado no Arquivo Histórico Regional.

Comentários

  1. Olá,

    o texto revela enigmas do nosso passado. Naqueles tempos eram as hidrovias os caminhos . Como velejador sei como é difícil encarar os humores do tempo. Gostei da frase :
    - ... "vigora um certo imaginário elaborado pela indústria cultural a partir do cavalo e não do barco. Um não se sustenta sem o outro" ...
    esclarece parte da nossa cultura.

    Muito legal.

    Bons Ventos,

    Marcio

    Veleiro Bruma 19 - Mar de Dentro
    Sava Clube PoA/RS

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