Deixem seus olhos fixos


A iconografia sobre a ditadura militar é cheia de fotos e charges de jornalistas e artistas do centro do país. Na escola, estudamos o período de 21 anos com o apoio didático de imagens de O Pasquim, Jornal do Brasil, etc. Pois, a partir de agora, poderemos aprofundar o conhecimento sobre a história com uma face mais regional. Foi lançado em Porto Alegre no dia 1º de abril, data que marca o golpe, o livro “Não Calo, Grito:  memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul”.

Fazendeiros e jagunços pilchados expulsam sem-terra. Foto: Luiz Abreu, 1987
Entre as imagens recuperadas está uma que até povoava os imaginários intelectual e nativista do estado, mas já ia esmaecendo e morreria com a geração que viveu o século vinte. A sistematização historiográfica dos autores trouxe de volta à luz a fotografia de Luiz Abreu, clicada em 1987 durante ocupação do latifúndio São Juvenal, em Cruz Alta (RS). Na legenda do livro diz o seguinte: “Com a conivência da polícia, os fazendeiros e seus jagunços reagem armados e despejam violentamente os colonos sem-terra”.

Em 1987 já vivíamos um período de abertura e democratização, mas o episódio revela o início de um conflito que só se complexificou, mesmo com o fim do regime totalitário, opondo essencialmente movimentos sociais de luta pela reforma agrária e latifundiários apoiados na força da Brigada Militar.

Mas o que eu gostaria de comentar mais a partir de agora neste texto é sobre a música “Deixem Seus Olhos Fixos”, do grupo Tambo do Bando,  inspirada nesta fotografia.

Tambo do Bando
Para apresentar o grupo aos que não tem familiaridade com seus feitos, vou apoiar-me em um trecho da agenda cultural do jornal Zero Hora, de 23 de setembro de 1987. Na época, a redação do Segundo Caderno tinha à frente os jornalistas Juarez Fonseca e Gilmar Eitelwein.

Tambo do Bando [...] é uma boa opção para quem curte música nativista, mas não se aferra à tradição como um carrapato. Formado por músicos que compõem, também, um dos melhores grupos vocais do Rio Grande do Sul, ‘situa-se entre o urbano e o rural’. Tem raízes, mas é progressista, com tempero latino e da MPB.

Desde 1985, os músicos Leandro Cachoeira, Vinícius Brum e Beto Bollo, eventualmente Texo Cabral, já eram celebrados na imprensa como nomes de destaque no cenário da música gaúcha. O trio, às vezes quarteto, tocava em bares de Porto Alegre e nos festivais nativistas estado afora. Mas só em 1987, com a adesão do escritor Luiz Sérgio Jacaré Metz como integrante, foram batizar-se de Tambo do Bando.

Era um tempo de experimentação musical. O estouro dos festivais de MPB refletia aqui no sul e algumas cidades promoviam eventos mais abertos a misturas entre a música regional gaúcha, outros regionalismos brasileiros e estrangeirismos. Cabe anotar que a efervescência criativa nem sempre era bem vista.

No ano de batismo, o grupo defendeu a música “Deixem Seus Olhos Fixos”, que rendeu o prêmio de melhor grupo vocal no 5º Musicanto Sul-Americano de Nativismo. A letra de Jacaré foi abertamente inspirada na fotografia de Luiz Abreu, publicada no jornal Diário do Sul naquele ano. Na apresentação, realizaram uma performance, maquiados como zumbis. Viu-se uma mostra do caráter do grupo, expressando um conteúdo contestador, em arranjos e composições inovadores. Eis um trecho da letra:

Nos arames que foi peão pendurado, deixem os olhos fixados/ Chicotes e talas nos palas e xergões cardados, deixem os olhos fixados/ Na ordem dos ricos, pisando na fome bem montados, deixem os olhos fixados/ A plebe, os esculachados que perambulam sem trégua por toda gleba/ Os mal-porcamente empregados, retirados, retirantes, os tiritantes, os insones, os lobos, cordeiros de Cristo, cães de cruz, para meus olhos estão voltados, onde eles estão fixados/ vocês que perambulam sobre enormes crucifixos, deixem seus olhos fixos.

Idealização do gaúcho
A letra desta música trata de uma realidade marginal, que estava fora da idealização do “gaúcho”, que normalmente cantava-se em festivais. Este foi o cerne da minha monografia de conclusão de curso de jornalismo na Universidade de Passo Fundo. Intitulava-se: “O Tambo que rompeu o Bando”. Em entrevista por telefone, em 2002, o jornalista Juarez Fonseca ajudou-me a compreender o que aconteceu na época: “uma abertura para temas mais contemporâneos, mesmo que os tradicionalistas tivessem sido contra”. Segue transcrição de uma parte da conversa telefônica:

“Com o componente ideológico, falando de sem-terras, de miséria, falar de coisas que os festivais tradicionais de uma certa forma sempre vetaram ou não aceitaram, porque os festivais tradicionais sempre foram uma coisa feita por fazendeiro, organizadores ligados ao conservadorismo. O Tambo do Bando era exatamente o contrário do conservadorismo, falava de Baía dos Porcos, de Che Guevara, de excluídos”.

Tambo do Bando vence 6º Musicanto. Foto: Renato Justi, 1988
No ano seguinte, com o tema da modernização chegando ao campo, o Tambo do Bando venceria a 6ª edição do Musicanto, com a música “O campeiro e o gravador” (veja foto). A abordagem do campo sob o ponto de vista crítico demonstrou-se em boa parte das letras do primeiro disco do grupo, Ingênuos Malditos, de 1990.

Vigília
E termino aqui esta longa e necessária contextualização do que poderia ter sido apenas uma fotografia publicada em um jornal num passado longínquo. Mas que ganhou vida extra na arte da música e agora, com um trabalho historiográfico, retorna à luz para que deixemos nossos olhos fixos, e a mente vigilante.



*Este vídeo é recente, com novo arranjo da música. Saiba mais da trajetória recente do grupo no post:
Não foi só uma festa de aniversário

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