Síndrome vira-latas em Passo Fundo, Tchê!

*artigo publicado no jornal O Nacional, edição de 17 de agosto de 2013.


Passo Fundo era uma cidade sem nada a oferecer, sem nada especial que a diferenciasse de outras, no início da década de 1980. Esta constatação foi do publicitário Walmor Palma, que diante dela propôs que se criasse um ambiente artificial para promover o turismo. Os itens previstos em seu projeto Passo Fundo, Tchê!, aprovado pela Câmara de Vereadores e sancionado como lei pela prefeitura, afinal, não foram postos em prática. Mas os resultados são notáveis, na medida em que ajudou a legitimar um discurso que colou o imaginário da cidade ao gauchismo.

Dizem que Las Vegas era um deserto onde rolava bolo de feno, no meio dos Estados Unidos, até que edificaram mil cassinos piscantes e o povo acorreu para lá com os bolsos cheios de dólares. Para sua paisagem foram transplantados souvenires egípcios, italianos e até estadunidenses. Onde havia nada, passou a se representar artificialmente tudo, ao gosto do freguês mais sedento por prazer.

Atenta às tendências mundiais pós-modernas, a recém criada Câmara da Indústria, Comércio, Agropecuária e Serviços de Passo Fundo (CICASP) propôs-se a solucionar os vários problemas que entravavam o desenvolvimento de Passo Fundo e região. Foi justamente da CICASP que partiu a iniciativa do projeto turístico “Passo Fundo, Tchê! A mais gaúcha cidade do Rio Grande do Sul”, oficializado em novembro de 1980 pela Câmara de Vereadores, na Lei nº 57/80. Um marco na política cultural local.

O projeto foi elaborado pelo jornalista, cartunista e publicitário, Walmor Palma. O autor possuía uma agência que, ao confeccionar adesivos, chaveiros, camisetas, enfrentava a dificuldade de representar Passo Fundo através de um desenho. Tal premissa é apresentada para justificar o projeto de lei, assinado pelo vereador Wilson Garay. Para eles, a “apatia” dos setores empresariais e governamentais estaria permitindo que outros povoados de menor expressão andassem à frente. Uma das poucas maneiras de conseguir desenvolver um município nas condições tão comuns como o de Passo Fundo seria o turismo.

Dentre os 24 tópicos propostos por Palma, estava a colocação de placas, decorações e monumentos na cidade com motivos gauchescos, contando com o apoio da iniciativa privada. Ainda não havia totem ao Teixeirinha. Outra sugestão era uniformizar os servidores municipais com trajes típicos (pilchas), bem como na iniciativa privada e nas escolas municipais. Também previa incentivar a criação de lojas especializadas na fabricação de artigos gauchescos, tais como chapéus, souvenires, arreios, cutelaria, além de erva-mate e charque. Churrascarias também seriam incentivadas. Segundo o projeto, através da fabricação de móveis de madeira, Passo Fundo poderia ditar moda na indústria moveleira “ao estilo P.Fundo, Tchê!”.

Constam no texto algumas empresas que na época já tinham aderido ao slogan “Passo Fundo, Tchê!, a mais gaúcha cidade do Rio Grande do Sul”, imprimindo material promocional com a frase, e outras que estavam usando motivos “gauches” como tema em suas publicidades, como o Comercial Grazziotin com “A Maior Liquidação dos Pampas” e o mascote Grazzito, um gauchinho; assim como o Supermercado Zaffari, simbolizado na logomarca por outro gauchinho.

Vale lembrar que nessa época estourava o movimento Nativista, com forte apelo midiático ao gauchismo em todo estado. Em A Parte e O Todo, o antropólogo George Oliven escreveu que na década de 1980 foram criados aproximadamente mil centros de tradições, mais de quarenta festivais de música nativista, e vários rodeios, estado afora. Não existe, portanto, originalidade. O projeto apenas se inseriu naquilo que o comércio denomina de “oportunidade”. Além disso, outras cidades reivindicavam o mesmo título. E o detalhe é que as outras estavam na frente em diversos quesitos. Os  festivais nativistas, por exemplo, começaram a pipocar em 1971. Passo Fundo só teria a Carreta Canção da Música em 1982. Edição única. Depois, entre 1990 e 2001 vieram cinco edições do Chamamento do Pampa. E acabou o nativismo na cidade.

Observa-se que as justificativas do autor do projeto baseiam-se principalmente em um aspecto cultural-imagético. Não se percebe em seu texto recursos e ações concretas, estruturais, pré-existentes, no âmbito econômico e social, no sentido de transformar a cidade em pólo turístico. Queria que criasse uma grife de móveis, mas não havia grande produção moveleira aqui. Tampouco há coincidência ontológica entre a história  cultural da cidade e o gauchismo que se queria vender. Há excentricidade, pois Passo Fundo nunca foi terra do tipo social gaúcho. Este sim viveu na região da Campanha.

Nem todos concordaram com o projeto em sua integralidade. Antes da aprovação desta lei, o vereador Argeu Santarém apresentou uma emenda pedindo correção na redação. Propôs alterar o slogan para “Passo Fundo, Che”, colocando a expressão “che” na língua de origem, o espanhol. Seu ofício protocolado revela que pretendia atrair os vizinhos uruguaios e argentinos. Talvez estivesse apenas firmando o pé como oposição. Mas a emenda foi rejeitada, pois a maioria do plenário acreditava que a expressão “Tchê” já era popularmente utilizada. O curioso é que “Che” lembra o guerrilheiro revolucionário Ernesto Che Guevara. Imaginem Passo Fundo ampliando sua vocação de passagem: depois de tropeiros paulistas, seria caminho de tropas comunistas?

Bueno. Motivado por este episódio, inicio aqui uma campanha de apoio ao Clube dos Amigos e Protetores dos Animais (Capa). Adote um vira-latas abandonado. Mesmo que ele não tenha pedigree, é muito simpático e valoroso. Promova Passo Fundo, do jeito que o município é! Não precisam outdoors piscantes para sermos pólo educacional, de saúde e serviços.

Leia mais sobre Passo Fundo aqui.

Leia aqui minha dissertação de mestrado sobre o gauchismo em Passo Fundo.

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