De Brasília a Porto Alegre, no bandolim não tem bairrismo


Enquanto morava em Brasília, uma das maiores diversões encontrava na Esplanada dos Ministérios, à noite, principalmente nos finais de semana, ao lado do Museu Nacional. Em meio àquela imensidão de concreto e céu, tornou-se costume montar um palco provisório que atraía gente em torno da música. Tudo de graça.

O brasiliense Hamilton de Holanda era frequentador assíduo do espaço. Portanto, já tinha abismado-me com a virtuosidade do bandolinista, antes dele vir a Porto Alegre para o show do Unimúsica na última quinta-feira. Não o suficiente para ficar insensível. Toda vez que o instrumentista se apresenta é um festival de queixos caídos.

Hamilton contribuiu na homenagem ao compositor gaúcho Octávio Dutra, no segundo concerto de uma série que celebrará este ano sete músicos da capital do Rio Grande do Sul. Sempre referendando a cidade e promovendo encontros. Desta vez, o projeto Unimúsica deu oportunidade ao gaúcho Rafael Ferrari de se apresentar ao lado do ícone brasiliense.

Leia aqui sobre o primeiro concerto da série:
Reconhecendo nosso contemporâneo Radamés Gnattali

Com toda esta proposta, ficou irresistível cair na tentação de comparar as cidades: a do centro-oeste e a do sul. A primeira observação poderia ser de que um projeto como esse seria impossível em Brasília. O Brasil sabe que o rock dos anos 80 floriu naquele deserto. Mas o que havia antes, se a cidade foi construída nos anos 60? Não há nomes reconhecidos com obra vasta, comparáveis aos porto-alegrenses Octávio Dutra e Radamés Gnattali, por exemplo.

Em segundo lugar, poderia perguntar a qual tradição de bandolinistas Hamilton de Holanda pertence? A cena musical brasiliense é muito nova. Até há um centro destinado a institucionalizar uma tradição, o Clube do Choro. Mas talvez o primeiro expoente gerado nele seja o próprio Hamilton.

Acontece que estas indagações bairristas não fazem sentido algum quando a música começa a rolar. Nem no tempo árido onde o artista cresceu, nem aqui no palco do Unimúsica. Quando Hamilton de Holanda toca bandolim o Brasil inteiro soa. No show de quinta-feira, ele fez o choro do gaúcho Octávio Dutra soar tão formidável quanto o vasto repertório que costuma tocar nas rodas de Brasília, oriundo maior parte do Rio de Janeiro.

Num dos pontos altos, mostrou uma das peças do seu novo disco duplo, composto por “caprichos”. O “Do Sul”, claro. Não sei se o sotaque tangueiro ou a dinâmica guitarreira, mas algo remeteu ao universo sulino. Depois fui ouvir as outras faixas. Há acentos diversos do país, sempre traduzidos pelo bandolim impecável e original, de 10 cordas.


Dirigindo o concerto, Rafael Ferrari tocou metade da noite com o regional Espia Só. Depois junto ao convidado candango. Na primeira parte, o também bandolinista apresentou o pouco conhecido repertório de Octávio Dutra. Coube um arranjo novo pra uma valsa, que virou um chamamé.

Depois, o porto-alegrense incluiu no programa uma composição sua, gravada no CD Bandolim Campeiro, em que aproxima o choro do nativismo. Findo o espetáculo na terrinha, Rafael fez as malas e foi cumprir uma turnê por dez cidades da Europa.

De berço
Fiz as provocações comparativas lá em cima para questionar nosso bairrismo. É corriqueiro aqui no sul deslumbrar-nos com crianças prodígio, que aprendem cedo a debulhar um violão ou uma gaita, afirmando que a habilidade está no sangue, por descendência direta de pais músicos ou simplesmente por nascer em solo gaúcho.

Mas fico me perguntando se poderíamos reconhecer em Rafael Ferrari aquela linhagem de bons instrumentistas “forjados” por uma tradição musical sulina. Daí reparo que ele começou a aprender bandolim com 20 anos. Poderíamos afirmar que seu “dom” vem de berço? E o fato dele ser gaúcho, determina a facilidade para explorar os cinco pares de cordas do seu bandolim?

E quanto a Hamilton, o nascer no Rio de Janeiro determinou seu talento? Mesmo que tenha se mudado pra Brasília ainda bebê, e lá se formado músico? Por último: a novíssima capital federal não pode gerar um artista talentoso?

Giovani Berti (percussão), Luis A. Cabreira (cavaquinho), Rafael Ferrari (bandolim), Hamilton de Holanda (bandolim), Max Garcia (violão) e Augusto Maurer (clarinete)

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