Nei Lisboa ainda toca novidades como antigamente


*leitura recomendada para maiores de 18 anos.

Tenho que confessar. Sou um espectador medíocre. Essa constatação fatal ocorreu-me na última quarta-feira enquanto assistia ao show de verão do Nei Lisboa no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Mesmo que sentado na primeira fila, fui insensível a uma apresentação original e provocadora. Posso estar exagerando, mas vamos aos fatos.

É preciso anotar que Nei é um exímio letrista. Sou de uma geração que correu pras lojas pra comprar seus discos à medida que iam sendo lançados (hoje não é preciso levantar a bunda pra isso). Ouvi cada um com o encarte na mão, acompanhando cada verso. E ainda bem que suas performances ao vivo exaltam esta qualidade. Nada de grande volume de instrumentação, nem distorções no talo, por mais que o repertório seja roqueiro. A atração principal não está nem na beleza da sua voz, mas nas palavras que ela emana.

São infalíveis versos impávidos como “Meu amigo, não se desfaça nessa fama/ Todo esse mundo do rock'n roll é ruim de cama” (Hein?! - 1988); irônicos como “O mundo é dos vivos/ O mundo é dos bancos/ E os bancos dos mendigos” (Produção Urgente - 2001); ou sacanas como “Oh, mana/ Eu quero é morrer/ Bem velhinho, assim, sozinho/ Ali, bebendo um vinho/ E olhando a bunda de alguém” (Baladas - 1988).

Durante a noite de quarta-feira, Nei Lisboa conversou com os presentes para saber quais os versos que gostariam de ouvir. Mesmo quando não havia ensaiado com a banda, saía lembrando velhas canções com a ajuda da plateia (mesmo as que nunca freqüentaram listas de mais tocadas nas rádios). Seu público é fiel.

Pode me incluir no coro. Já assisti ao velhinho meia dúzia de vezes por aí nos palcos. Mas agora penso que essa insistência talvez tenha sido um erro. Na era em que vivemos, da reprodutibilidade técnica, as obras de arte (inclusas as canções) tornam-se mantras intermináveis, repetidas exaustivamente ao nosso simples toque no play. Não é necessário um disque-jóquei programando os sucessos a cada hora nas ondas radiofônicas. Nós desempenhamos este costume redundante para consumo próprio.

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No tempo em que para ouvir música era imperativo que alguém tocasse, não se podia pressionar o músico na escolha de um repertório “conhecido”. Ele tocaria o que aprendeu com alguém e que provavelmente seria novidade para os ouvintes. Ou apresentaria algo de sua lavra. Portanto é formidável que o show de Nei Lisboa proporcione prazer “medieval” similar a este. Quarta-feira ele tocou duas inéditas que deverão ser gravadas no próximo disco. (Enquanto isso, eu estava disperso fotografando aquela cabeça branca).

Em outro momento do show, o compositor anunciou que iria tocar o melô da revista Veja, aguçando a atenção da platéia para a letra da próxima música. Era Publique-se a versão, faixa do último CD, A Vida Inteira. Ninguém deu um pio até que vieram os versos: “Quando um homem disser/ Mordido num portão/ Cerque-se o cachorro/ Tome-se a declaração/ E se o fato é muito chato/ Publique-se a versão do cão”. Foi o estopim para uma gargalhada em cena aberta de algum espectador sentado umas cinco filas atrás de mim (ouvir pela primeira vez uma poesia original e perspicaz provoca deleite sem igual, mesmo). Que inveja! Eu já conhecia a sacada desta letra e estava até cantando junto, portanto fui incapaz de surpresa e muito menos de riso espontâneo.

Agora percebam a diferença entre eu e o parceiro da fila lá de trás. O cara deve ter saído do teatro sorrindo de satisfação, louco pra comprar o disco (inocentemente, estragando suas próximas fruições). Provavelmente ele nem precisou beber aquela noite (nem foder). Dormiu como um anjo.

*putz, acho que além de um espectador medíocre, ultimamente ando meio atávico, tecnófobo e tiozão.


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