GEMA – série multimídia quer jogar luz na diversidade musical do RS


Em saga rumo ao sul, o narrador de Assim na Terra encontra uma cigana que lê sua sorte na gema do ovo. Somada esta parábola interiorana à citação da frase de T.S.Eliot, “no fim o começo, no meu começo o meu fim”, que se repete tal um mantra ao longo do livro, teríamos um argumento forte para nomear um projeto de pesquisa musical que visa documentar o regional profundo do Rio Grande do Sul.

Naquela narrativa de 1995, o escritor Luiz Sérgio Metz propôs uma viagem de se entranhar na terra aos olhos vendados, expondo melhor os outros sentidos. Na empreitada recém-posta, o projeto GEMA quer aguçar os ouvidos para sentir melhor as nuances que se planificam ao olhar mediado. E o resultado não será literário, mas audiovisual.

Nestes tempos de cãibras nos nervos óticos, uma turma de artistas/produtores que se jogue ao encontro da diversidade de matizes musicais que colorem o chão do Estado poderá recolher uma vasta palheta de tintas. Não seria o suficiente para chegar nem perto dos sujeitos que criam e mantêm uma cultura com endereço e passaporte. A turma do GEMA sabe. Assim, abstêm-se de pretensões totalizantes ou de descoberta de algo inédito. Resignam-se a jogar luz em alguns tons pouco prestigiados no imaginário regional, ofuscados no século XX pela institucionalização gauchesca.

Com financiamento aprovado no final do ano passado no Edital Natura Musical – Edição RS, o grupo de pesquisadores começa a registrar a experiência de músicos, mestres, grupos e comunidades tradicionais, seus ritmos e instrumentos. O objetivo final é produzir conteúdo multimídia a partir destas manifestações “que compõem o universo da música produzida no Rio Grande do Sul, propondo sua inclusão no mapa da música popular brasileira”. Serão dez documentários em curta-metragem, registros fotográficos, uma revista impressa, palestras em quatro cidades do Estado, um site com diário de bordo, podcasts e conteúdo extra das filmagens.

Pude conhecer parte da equipe de desenvolvedores, formada por Lucas Luz (produtor), Ismael Oliveira (músico), Rafael Rodrigues (músico), Francisco Cadaval (jornalista e diretor de vídeos) e Mario Ferrari (diretor de arte e multimeios). Como consultores, figuram ainda no projeto Arthur de Faria e Pedrinho Figueiredo.

Acesse aqui o resultado do edital Natura Musical – Regional, na seleção para o Rio Grande do Sul. 

Em entrevista a este blogueiro, Lucas e Ismael destacaram alguns temas que poderão configurar episódios da série: os tambores e os cantos de devoção do Maçambique de Osório, a rabeca dos M'bya Guarani, em Viamão, e os tamboreiros de terreiro Alabê no caminho entre Pelotas e a capital. Também chamam a atenção para a pesquisa do GEMA os gaiteiros do Ibicuí, de um quilombo em Santana do Livramento; o samba e o samba-rock em Porto Alegre; além de ritmos como o bugio e o das bandinhas alemãs.

São mais temas do que episódios. O projeto entregue no edital tinha 17 conteúdos em desejo, centrados não em nomes de músicos, mas em elementos da cultura musical que interessam, tais como a produzida por guaranis. Portanto, a equipe deverá escolher o que será registrado neste ano com o financiamento da Natura e o que deverá ser trabalhado no futuro.

Fotos ilustrativas (crédito: Lucas Luz)
O argumento dos roteiros será sempre calcado no fazer musical, descrevendo processos e relações tradicionais. Pois eles querem problematizar a visão mais folclorizada dessas culturas. Compreendem que o músico a ser retratado é criativo e é sujeito de sua história, não mero reprodutor. “A cultura é viva”, acreditam. Com foco na diversidade, visam documentar uma ampla realidade musical do Rio Grande do Sul.

Os pesquisadores avaliam que no Estado a tradição teve um investimento importante a partir dos anos 40 do século XX, mas foi assumindo um caráter ritualístico, normativo, persuasivo, institucionalizado, de moeda de troca. Em nome da influência europeia (portuguesa principalmente), fecharam-se os ouvidos para expressões como as de índios e negros.

A partir deste cometário, é impossível não lembrar e comparar ao trabalho essencial que Paixão Cortes e Barbosa Lessa empreenderam. Na gênese de um movimento pelas tradições gaúchas, queriam combater o imperialismo estadunidense, buscando raízes nos mais distantes rincões do Estado. Já a nova turma quer retratar parte do que acontece hoje. Lucas Luz observa que “em cima do palco de festival nativista os músicos pilchados defendem a preservação das raízes, enquanto no chão da plateia deixa-se um mar de latinhas de Coca-Cola para trás”. Ismael Oliveira complementa: “a cultura é um cavalo xucro que não dá pra encilhar”.

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