Gatilho da argentinidade acerta no peito da cultura contemporânea - resenha do filme Cidadão Ilustre


Irretocável. O filme argentino O Cidadão Ilustre evoca temas como provincianismo e autoria, entregando na tela uma crônica formidável sobre o que podemos chamar de cultura contemporânea. Enquanto chafurda na vaidade, tanto dos conterrâneos quanto dos colegas artistas, os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn emolduram uma argentinidade atualíssima, ainda sim, passível de identificações além continentes.

Numa tentativa de sinopse pode-se resumir que a película inventa um novo ganhador do prêmio Nobel de Literatura, o qual a Argentina ressente-se por nunca ter logrado, nem com Borges, nem com Cortázar (o que para eles seria o mínimo). O escritor fictício, que dispara uma sonhada revanche nacionalista, acaba logo na primeira cena avacalhando com a láurea estrangeira, talvez reativando o orgulho castelhano, apesar do vexame protocolar. Na sequência, aceita inesperadamente abandonar sua agenda de celebridade internacional para atender ao chamamento de sua terra, uma pequena cidade interiorana. Tal aceno do roteiro logo despertaria uma sensação de valorização das raízes, em meio a um mundo globalizado, não fossem as sátiras e reflexões mais sérias que se sucedem até o final do filme.

Longe de ajudar a responder aquela perguntinha de curso de espanhol para praticar a conversación, “A vida é melhor no interior ou na capital?”, O Cidadão Ilustre evoca diversas tensões, preconceitos e questões irresolutas. Há estereótipos evidentes nas personagens. Mas parece que a ação do protagonista desconcerta a expectativa trivial sobre o fim de cada uma e de cada situação. A jovem inquieta que nasce em família de status na cidade pequena quer a todo preço ir embora. Ao invés de conseguir, mostrando o dedo médio para o lugar onde nasceu, um “fim de mundo”, ela falha com sua precipitação juvenil, comum a boa parte da juventude em qualquer metrópole ou buraco do planeta. Já a tiazinha da associação de artistas do município, com sua efigie de freira rabugenta, moralista e elitista, tem sucesso ao censurar a revolução de critérios de avaliação artística que o forasteiro queria levar a cabo. Frustra nossa torcida, como público progressista que vai ao cinema no Brasil para assistir a filmes argentinos.

O senso sobre arte e cultura do escritor premiado, em parte relativista, em parte de saco cheio da vida, conduz as crises sobre o status quo. Seja no palco do Nobel, ao lado de “princesas” caucasianas de sorriso congelado que compõem o protocolo tradicional que retumba mundo afora; seja numa escola de um pequeno vilarejo camponês, ao lado da “princesa” eleita para representar a beleza e a prosperidade dos conterrâneos, em uma fotografia oficial que irá adornar o gabinete do prefeito até que seu opositor político vença a próxima eleição.

Ao final, esgotados de vergonha alheia e desconcerto por situações absurdas, que podem ter levado à gargalhada, à indignação ou à comiseração, quedamo-nos atônitos. "Que montanha-russa foi essa?" "Era só sacanagem de artista?" "Cadê os valores cristãos da argentinidade?" "E o orgulho gaucho, onde foi parar?" "Socorro, minha amada racionalidade!" "Alguém me explica o que foi isso?" Mas juntando os cacos do que sobrou, vamos lembrar de cenas que marcaram. Por exemplo, o aparente non sense dos caçadores, na sua reprodutibilidade filial naturalizada (parece até lobotomizada), escracha com “costumes” machistas, até pouco tempo romantizados.

Ah, e a questão da autoria, que sublinha o roteiro? Em outra cenas, os cidadãos locais reivindicam direito sobre histórias adaptadas pelo escritor famoso e “usurpador”. Enquanto isso, ele insiste, “parecendo louco”, em reconhecer valor cultural em uma tela que um peão pintou sobre uma placa de publicidade de agrotóxicos. Essa disparidade latitudinal não se resolve se não estivermos sensíveis, enquanto sentamos na sala do cinema, para superarmos o binarismo provincianismo-cosmopolitismo. E O Cidadão Ilustre é um gatilho poderoso para essa virada.



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