Seu Jorge retoma subversões de David Bowie em turnê norte-americana


Gentes das mais variadas origens chegavam ao lobby do teatro St-Denis. Falavam não só francês e inglês, as línguas mais faladas em Montreal, nem apenas o português das letras de Seu Jorge, mas línguas asiáticas e do leste europeu. Alguns usavam touca vermelha para fazer cosplay de Pelé dos Santos, o personagem que o cantor brasileiro interpretou no filme cult que deu origem àquele exótico espetáculo, em cartaz no Canadá e nos Estados Unidos, após um lapso de mais de dez anos desde a performance nas telas do cinema.

No abrir das cortinas, depois das primeiras músicas, Seu Jorge logo contou a história do dia em que o diretor Wes Anderson telefonou para sua casa no Brasil e ofereceu o papel em Life Aquatic with Steve Zissou (2004). Sem parar de jogar Playstation, teria respondido que conhecia algumas músicas de David Bowie e topou a tarefa de convertê-las ao português para interpretá-las em cena, apenas acompanhado do violão. Mas havia um pequeno detalhe que Seu Jorge teria explicado ao Seu Wes: lá no início dos anos 2000, não sabia falar inglês nem tocar rock.

Hoje Seu Jorge é artista famoso (aquela exposição em Hollywood deu um merecido empurrão). No Brasil, tornou-se hitmaker. No exterior, fala inglês, italiano e o francês que usou pra se comunicar com a plateia diversa de Montreal. Para além da sintaxe local, apoiou sua retórica em ícones da cultura global, como o já citado Playstation, futebol, uísque e Jurrassic Park. E abusou do bom humor carioca. Exemplo disso foi a anedota sobre a gravação de Rebel, rebel, rock de arranjo original agitado com riffs de guitarra. Seu Jorge diz ter ficado sem saber o que fazer, pois havia chegado o dia de gravá-la e não sabia como tocá-la. Então, após ter levantado as mãos para o céu e pedido uma ajudinha para Jesus (outro “ícone internacional”), resolveu abrasileirar. Agregou sétimas e nonas nos acordes maiores, e ritmou com baixos alternados estilo Bossa Nova. Não gerou grande sofisticação harmônica, se compararmos aos arranjos clássicos do gênero, como em Tom Jobim ou João Gilberto, que criavam sequências de acordes exclusivos a cada estrofe da música. Mas para efeito prático, soou de fato uma ambiência bossanovística.

Rock’n’roll Suicide é uma das canções mais complexas de Bowie que Seu Jorge incluiu no repertório, se a analisarmos exclusivamente como canção, desnuda de performances expansivas e arranjos de banda completa. A versão minimalista, com voz grave, banquinho e violão, valoriza a estrutura modular da original. Mas os pontos altos desse trabalho acontecem quando Pelé dos Santos dribla a melodia com sua dicção, abusando de gírias e expressões que soam com ginga. Exemplo disso está em Suffragette City, nos versos “atura a minha canhota” e “segura a onda malandro”.

O show todo é resultado dessa malandragem de um compositor que traduziu as letras sem bem conhecê-las. Não são traduções, são versões livres com versos novos sobre a mesma melodia. Em tempos de samplers, apropriações e citações liberadas, o que Seu Jorge fez em Life Aquatic Studio Sessions não tem nada a ver com algum formalismo que pretendesse “respeitar” as canções originais, conforme o preciosismo de Tom Jobim quando verteu seus standards para a língua anglo-saxã, ao lado de Norman Gimbel, para que Frank Sinatra pudesse cantá-las em 1967. O jeitinho criativo escolhido por Seu Jorge esteve mais para a subversão mesmo.

Em Quicksand, outro destaque, embora haja partes piegas como “minha mente me fazendo mal”, há versos que representam muito bem este subverter abrasileirado, como “seu beijo amargo de jiló”. Não só pela evocação de uma fruta típica, mas também por seu som característico do português, ignorando a letra original que falava da esotérica Ordem Hermética da Aurora Dourada, sociedade secreta inglesa surgida no século 19. Noutra estrofe, resultado interessante pelo mesmo motivo: “Deu formiga no mel/ Maribondo e cupim/ Que que eu vou fazer de mim”.

Em Five Years, inspirou-se no set do filme em que atuava e se distanciou bastante do iminente fim do mundo imaginado por Bowie. Quando canta “E é sem ar que eu fico/ Há muito tempo eu fico/ E nunca fico rico”, a rima é a única proximidade com a letra matriz, a qual reitera a palavra people diversas vezes. Talvez este artifício funcione de forma direta com o público norte-americano que não entende bulhufas do que Seu Jorge canta, e fica maravilhado com a pronúncia das palavras, colorindo de forma diferente melodias familiares (o próprio Bowie declarou certa vez admiração por isso).

É de se perguntar se funciona da mesma forma para o público brasileiro, habituado ao encaixe perfeito de letra e melodia na MPB, em que o sentido dos versos é valorizado pela dicção musical apropriada. Aliás, não há consenso sobre se David Bowie é tão familiar na América Latina quanto no resto do mundo. Historicamente, nunca vendeu muitos discos nessa parte do continente. No entanto, é notório que nos últimos anos sua efígie pop tem se massificado em nosso imaginário, enquanto sua sonoridade começou a influenciar um nicho.


Retomando o repertório, pode-se afirmar que uma das melhores versões é para Life on Mars?, principalmente quando canta “meu bem, vamos viver a vida”. O tema romântico cai bem. Em Ziggy Stardust, outra da fase extraterrestre do artista inglês, a ficção científica também dá lugar ao romantismo. A estrofe “eu não vou mudar/ vou ficar com meu time/ não vou misturar cachaça e café/ só pra te agradar/ assim me sinto bem/ não devo a ninguém” é bem articulada.

Assim, não dá para afirmar que Seu Jorge fez versões Bossa Nova para os rocks de Bowie, conforme a imprensa norte-americana às vezes acaba resumindo quando noticia o próximo show da turnê. O gênero brasileiro é uma referência guardada no museu do imaginário (ou sônico) que Seu Jorge buscou para resolver a interpretação de algumas das músicas. No entanto, seria pouco para arrebatar as plateias desta turnê pela América do Norte, com bis. O grande mérito está em sua articulação das palavras na melodia, em uma performance que parece meio descompromissada, mas que é abertamente afetiva e sacana, tal o sorriso do menestrel ao receber os gringos na quadra da escola de samba. Soma-se a isso o fato de que todos que embarcam no mundo cinematográfico de Steve Zissou vestem a mesma fantasia, uma touca vermelha, mesmo sem falar a mesma língua.

A turnê Life Aquatic 2017 começou em 5 de setembro em Phoenix (EUA), passou dia 20 por Montreal (Canadá), e segue até dia 7 de outubro com o último show em Fort Lauderdale (EUA). É o segundo ano consecutivo, após a morte de David Bowie, em que o público desses dois países recebe este show, em mais de 20 cidades. Não há datas previstas para o Brasil.




Comentários

Postagens mais visitadas